O Paradoxo da Autoconsciência
― Graça e Armadilha
< você pode também ouvir o texto lido por mim neste link: https://youtu.be/vcmdPAKGSLc >
Entre todos os seres, o ser humano carrega um dom particular: a capacidade de se saber existente. Não apenas vive, mas se percebe vivendo. Não apenas sente, mas reconhece que sente.
Mas essa mesma dádiva evolucionária abre um paradoxo. Ao se perceber como “eu”, o ser humano experimenta uma cisão. Cria-se uma ficção necessária, o ego, que organiza a vida, mas ao mesmo tempo a aprisiona em uma narrativa de separação: “eu e o mundo”, “eu e o outro”, “eu e Deus”. A consciência, ao refletir sobre si, acaba enredada no autoengano da dualidade.
E desse engano nasce o sofrimento. A autoconsciência, incapaz de negar a realidade da impermanência, gera apego e medo: ao corpo, aos prazeres, aos vínculos, às imagens que sustentam nossa identidade. Porque, se existe um “eu”, existe também aquilo que pode ser perdido. E aí, o mesmo dom que nos revela como seres conscientes nos coloca diante de uma gigante fragilidade.
No entanto, o Yoga e o Tantra nos lembram: o que em nós cria o autoengano da separação é também a chave da libertação. A faculdade de se perceber pode se voltar para a sua própria fonte. Quando o olhar da consciência deixa de se fixar apenas na superfície do ego e mergulha mais fundo, descobre que o “eu” não é uma entidade isolada, mas a própria Consciência ilimitada que pulsa em tudo, que sente tudo, e assim, enxerga e não apenas vê, escuta e não apenas ouve.
Então, aquele sofrimento do apego começa a se dissolver. Já não se trata de negar a impermanência, mas de reconhecer que, no fundo, nada nos é realmente separado. O que muda, o que passa, o que morre, apenas acontece na superfície. A essência permanece intocada, silenciosa, plena.
A autoconsciência, portanto, é graça e armadilha. Graça, porque nos abre ao mistério do divino em nós. Armadilha, porque cria a ilusão de que somos menos do que realmente somos. A prática espiritual é esse caminho de lapidar a percepção: transformar autoengano em autoconhecimento, separação em unidade, apego em libertação.
No instante em que nos percebemos não como “alguém que tem consciência”, mas como a própria Consciência, o paradoxo se resolve. E o que resta é apenas a simplicidade de Ser, com o fim da tirania do ego.